O Marco Civil da Internet
ATUALIZAÇÃO: O post abaixo foi escrito tendo como base uma versão antiga do ante-projeto, o qual sofreu inúmeras alterações após esta publicação. O antigo artigo 15 foi desmembrado em vários outros artigos (18 a 21 da versão atual), e a meu ver, apesar de ter afastado a demora na tomada de providências no que tange ao chamado “pornô de vingança”, continua a vilipendiar jurisprudência já formada sobre o tema e irá, sem dúvida alguma, levar ao Poder Judiciário questões que não precisariam ser resolvidas naquela instância.
Muito se tem falado acerca do Marco Civil na Internet e das mudanças que com ele advirão – o anteprojeto de lei ainda está em trâmite na Câmara dos Deputados e as discussões têm sido acaloradas, não só quanto à chamada “neutralidade da rede” como também no que tange ao art. 15 do referido anteprojeto, o qual visa regular retirada de conteúdo da internet. Esse texto visa abordar alguns aspectos do mencionado artigo.
O art. 15 do anteprojeto do Marco Civil dispõe:
Art. 15. Salvo disposição legal em contrário, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
Parágrafo único. A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
A redação acima na verdade pretende alterar a jurisprudência que vem sido construída até agora, jurisprudência esta, vale ressaltar, contrária aos provedores de conteúdo. Hoje, na ausência de dispositivos legais próprios, a jurisprudência é no sentido de se responsabilizar o provedor de conteúdo após sua ciência dos fatos, caso este não retire o material objeto do litígio. Assim, a notificação extra-judicial tem o fim de dar ciência dos fatos ao provedor e solicitar a retirada do conteúdo, constituindo-o em mora e responsabilizando-o pelos danos caso a retirada não seja feita. Na maioria das vezes o conteúdo é retirado, por duas razões: a) o direito do notificante está claro; b) o provedor não tem interesse em sofrer uma ação judicial. A questão é resolvida sem a ida ao Poder Judiciário de forma eficaz e com menos custos.
Com o advento artigo 15, é improvável (para não dizer impossível) que se consiga dos grandes provedores de conteúdo a retirada de qualquer material sem que seja necessário ajuizar uma ação competente. Isto implicaria em uma judicialização de questões mais simples, cuja propositura de ações seria a priori completamente desnecessária. Tendo em vista a situação precária de nosso Poder Judiciário, como há muito mais processos do que há capacidade e estrutura para julgá-los, não é preciso ser um mago para prever um entrave sério.
Ativistas na internet vêm afirmando que o art. 15 seria bom porque impediria a rápida remoção de conteúdo que infringe direitos autorais, ou ainda que o mecanismo da notificação seria uma “censura prévia” ou que “inverteria o ônus da prova” – enfim, uma variedade sem fim de afirmações descabidas com as quais não se é possível concordar, mas que analisaremos a seguir.
No que tange à questão dos Direitos Autorais, sem entrar no mérito que tal artigo somente implicaria em uma demora maior na retirada de conteúdo (visto que infração a direito autoral é ilícito e portanto as chances de vitória seriam enormes), ainda assim é possível que os provedores continuem utilizando os mesmos métodos que utilizam hoje. Vejamos: por ano são formalizadas cerca de 17.000 notificações extra-judiciais para retirada de conteúdo. Com a aprovação do art. 15, todas essas questões seriam judicializadas e os custos seriam enormes. Não estamos falando só da estrutura do Poder Judiciário, mas de advogados, custos de estrutura e principalmente de honorários de sucumbência (levando-se em conta que a grande maioria dos pedidos é atendido – 95% -, este custo seria bem alto).
Ora, os provedores certamente não estarão dispostos a arcar com todos esses custos, e nos casos dos direitos autorais será muito mais interessante para eles retirar o conteúdo antes da propositura da ação, mediante a mesma notificação extra-judicial que hoje é utilizada. Cumpre notar que o dispositivo do art. 15 não veda a retirada antes de medidas judiciais; apenas obriga à retirada e responsabiliza o provedor após ordem judicial. Assim, é perfeitamente possível que os provedores optem por continuar a retirar conteúdo infrator de direitos autorais, mediante prova inequívoca e após notificação extra-judicial – e nesse caso os ciberativistas terão lutado em vão.
Outro ponto que merece esclarecimento é sobre o “notice and take down” sobre o qual muitos têm falado, afirmando que o Direito Brasileiro vem se apropriando de legislação americana sobre Direitos Autorais para legislar sobre internet, ou que o Brasil “vem adotando espontaneamente o mecanismo do notice and take down”. Não há como concordar com esse ponto.
Apesar de haver algumas semelhanças, hoje temos no Brasil um sistema advindo da construção da jurisprudência, com um instituto que sempre existiu no Direito Pátrio:a notificação extra-judicial (que consiste, segundo Orlando Gomes no “ato pelo alguém cientifica a outrem um fato que a este interessa conhecer”, para que faça ou deixe de fazer algo). Foi em torno dela efetivamente que toda a jurisprudência se construiu no País quando falamos de retirada de conteúdo da internet. Vejamos um voto recente da Ministra Nancy Andrighi sobre o tema:
RESPONSABILIDADE CIVIL. INTERNET. REDES SOCIAIS. MENSAGEM OFENSIVA. CIÊNCIA PELO PROVEDOR. REMOÇÃO. PRAZO.
1. A velocidade com que as informações circulam no meio virtual torna indispensável que medidas tendentes a coibir a divulgação de conteúdos depreciativos e aviltantes sejam adotadas célere e enfaticamente, de sorte a potencialmente reduzir a disseminação do insulto, minimizando os nefastos efeitos inerentes a dados dessa natureza.
2. Uma vez notificado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, o provedor deve retirar o material do ar no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada.
3. Nesse prazo de 24 horas, não está o provedor obrigado a analisar o teor da denúncia recebida, devendo apenas promover a suspensão preventiva das respectivas páginas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações, de modo a que, confirmando-as, exclua definitivamente o perfil ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso.
4. O diferimento da análise do teor das denúncias não significa que o provedor poderá postergá-la por tempo indeterminado, deixando sem satisfação o usuário cujo perfil venha a ser provisoriamente suspenso. Cabe ao provedor, o mais breve possível, dar uma solução final para o conflito, confirmando a remoção definitiva da página de conteúdo ofensivo ou, ausente indício de ilegalidade, recolocando-a no ar, adotando, nessa última hipótese, as providências legais cabíveis contra os que abusarem da prerrogativa de denunciar.
5. Recurso especial a que se nega provimento. (in RECURSO ESPECIAL Nº 1.323.754 – RJ – 2012/0005748-4)
Cumpre reparar que não há qualquer menção a temas específicos: o acórdão fala em qualquer conteúdo ilícito e não em conteúdo que infrinja direitos autorais. Também não há retirada imediata do ar; recomenda-se uma retirada provisória, análise e posterior retirada definitiva (isso tudo sem processo judicial). E análise de vários acórdãos mostra que não há uma “importação” de instituto e sim uma longa construção jurisprudencial, contrária aos provedores, que foi se produzindo com o passar do tempo.
O Direito Americano possui efetivamente um instituto próprio para direitos autorais onde o titular do direito notifica outrem sobre a infração e este é obrigado a retirar o conteúdo ou será responsabilizado, chamado notice and take down. É mesmo muito parecido com a construção jurisprudencial que o Brasil vem adotando; no entanto aqui no Brasil a jurisprudência não é adotada apenas para casos de direitos autorais e sim para todos os casos de ilícito. Os acórdãos não mencionam o instituto do americano do “notice and take down” – até porque não precisariam fazê-lo. Como já dito, a notificação extra-judicial sempre foi um instituto muito utilizado no Brasil; não há porque “importar-se” institutos estrangeiros, mormente quando a origem não é realmente esta: o sistema predominante hoje vem efetivamente da jurisprudência construída através dos anos.
Não há que se falar também em censura prévia: esta somente haveria caso o provedor examinasse o conteúdo antes deste ser colocado na internet; nas hipóteses mencionadas, o conteúdo é retirado mediante notificação sob risco de responsabilidade e indenização em ação judicial.
Assim, na forma tal como está redigido, o art. 15 não só não trará os benefícios que os ciberativistas esperam, como também trará muita complicação para aqueles que necessitarem retirar algum conteúdo ilícito da internet nos anos vindouros.
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